quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Contos do Caveira: "D. Conceição"


D. CONCEIÇÃO

Seria exagero dizer que D. Conceição era má pessoa. No fundo, ela tinha um bom coração. Mas tinha maus hábitos. O pior deles era o preconceito generalizado que ela manifestava contra uma lista verdadeiramente enciclopédica de características humanas, que abrangia fatores de natureza social, racial, religiosa, econômica, política, ideológica, filosófica, esportiva, gastronômica, etc.

Mas o preconceito mais forte que D. Conceição tinha era em relação aos pobres.

Voltando do banco, a reclamação era sempre a mesma: “Meu bom Jesus do céu, nunca vi tanto pobre na minha vida! É aquela fila de pobre que não acaba mais!”, esbravejava. Sustentava que “pobre gosta tanto de fila que é capaz de fazer fila para entrar em uma”. Andando pelo centro da cidade, as queixas eram semelhantes: “É pobre enfeiando a cidade por todos os lados, um caído bêbado no chão, outro pedindo esmola pra não trabalhar, uma visão do inferno!”, declarava.

A Iracema, vizinha e melhor amiga de D. Conceição, havia aprendido a conviver bem com os queixumes preconceituosos da amiga. Achava exagerado e inapropriado, mas conseguia ouvir sem se deixar abalar. Sabia que no fundo, no fundo, D. Conceição tinha um bom coração.

Os anos se passaram, e a vida nem sempre foi muito boa com D. Conceição. Um de seus filhos tinha problemas com o álcool (ou com a ausência deste, melhor dizendo). Outro ficou desempregado por um longo tempo. A pensão do finado esposo era uma miséria. Injustiças do destino para com D. Conceição, uma senhora que no fundo, no fundo, no fundo era boa pessoa. Um dia, muito a contragosto, D. Conceição foi finalmente convencida pela família a solicitar um auxílio financeiro do governo, voltado para pessoas de baixa renda.

Voltando para casa, após a primeira vez em que foi sacar o dinheiro referente ao oportuno benefício, D. Conceição foi tomar o café da tarde com Iracema. Falou pouco, tendo apenas queixado-se brevemente do calor, que lhe baixou a pressão. Mas, após alguns instantes, não se conteve. Fez a careta de sempre e, balançando a cabeça, sentenciou:

- Também, com todo aquele pobrerio ao meu redor!

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