quarta-feira, 11 de outubro de 2017

"Blade Runner 2049" é competente, esforçado e esteticamente impecável, mas infelizmente passa no teste Voight-Kampff - e isso é um (grande) problema!

 

[Observação: contém SPOILERS!]

"Blade Runner", o clássico do cinema de ficção-científica lançado em 1982, lidava com uma série de questões filosóficas, religiosas, sociais e políticas. O filme transportava para as telas uma das mais permanentes indagações do escritor Philip K. Dick (autor de "Do Androids Dream of Electric Sheep?", o livro que inspirou o filme), qual seja: o que significa ser humano?

Na película de 1982, esta questão é ilustrada por meio da justaposição entre seres humanos e os replicantes, organismos sintéticos virtualmente indistinguíveis das pessoas normais. De forma paradoxal, mas igualmente brilhante, a única forma de distinguir os replicantes dos humanos, no universo ficcional de "Blade Runner", era através de um teste de empatia e de demonstração de emoções humanas. Isso porque os replicantes eram incapazes de emular a apatia, a indiferença, o niilismo, a frieza e a falta de empatia das pessoas "de carne em osso" em geral. Submetidos ao referido teste ("nós o chamamos de teste Voight-Kampff, para resumir", nas palavras do personagem Rick Deckard), os replicantes acabavam se revelando não-humanos justamente pelo seu "excesso" de sentimentos humanos. "Passar" no teste implicava em não se abalar emocionalmente. "Falhar" no teste significava demonstrar sentimentos, emoções e humanidade - algo impensável para os humanos adultos do universo do filme.

Em "Blade Runner 2049", a erosão ou desaparecimento dos sentimentos humanos parece ser menos um leitmotif da trama do que propriamente uma característica marcante da própria produção em si. Interessante e indiscutivelmente bem executado sob diversos aspectos, o calcanhar de Aquiles desta tardia continuação reside justamente na sua frieza, distanciamento e desapego emocional. Reconheço que estas características talvez sejam excelentes como forma de traduzir o espírito do nosso mundo real na presente década, mas funcionam muito mal dentro do universo ficcional inaugurado pelo filme de 1982, no qual a distopia, a desintegração social e as sombras do mau uso da tecnologia coexistem com a (sempre difícil) preservação das qualidades redentoras do perseverante espírito humano. 


"Blade Runner" apresentava uma delicada mistura de razão e emoção, lógica e paixão, inteligência e amor. Transitava livremente entre o deprimente-distópico e o romântico. Sua continuação, seja por incompreensão da obra original ou pela vontade deliberada de seus realizadores, passa longe dessa delicada receita. O resultado é um filme visualmente muito bonito e, em vários momentos, intelectualmente provocativo - mas distante, frio, plano como uma tela de monitor e desprovido de alma.

Esta atmosfera de assepsia emocional permeia "Blade Runner 2049" inteiramente, do todo às partes, da fotografia à música. A trilha sonora, assinada por Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, apesar de ter seus bons momentos, soa como uma versão diluída, derivativa e anêmica da trilha sonora original de "Blade Runner" de Vangelis. Em sua maior parte, a música é "presa", contida e distante, emocionalmente sedada, em contraste com a arrebatadora obra-prima de Vangelis. Deixo registrada a minha dúvida: se o objetivo era uma trilha "que soasse como Vangelis", por que não trazer de volta a maravilhosa e icônica trilha sonora do filme original? E, se o objetivo era partir para algo novo, por que trazer Hans Zimmer para assinar uma obra musical derivativa que soa como a trilha de Vangelis depois de diluída em um barril de água da torneira?

A mudez emocional de "Blade Runner 2049" pode ser identificada até nos detalhes. Enquanto que, no filme de 1982, uma das cenas mais emocionalmente arrebatadoras era protagonizada pela personagem de Sean Young tocando piano no apartamento de Deckard, em "Blade Runner 2049" a figura do piano reaparece meramente na condição de instrumento quebrado, incapaz de emitir quaisquer sons. Parece uma metáfora comparativa dos dois filmes.


Toda esta frieza narrativa, é claro, cobra um preço. Perto do final do filme, o personagem Deckard é colocado, em duas cenas distintas, diante de duas figuras amadas do seu passado. Em uma continuação que tivesse a competência de reproduzir de forma minimamente adequada a sensibilidade do filme original, ambas as cenas levariam o público (sobretudo os fãs do filme original) às lágrimas. Mas não é o que acontece. Quando "Blade Runner 2049" finalmente resolve investir algumas fichas em sentimentos, já é muito tarde para o espectador, que não é envolvido com os personagens em momento algum e se conecta com a história de forma tão apática e indiferente quanto as feições de Harrison Ford ao longo do filme. A sensação que dá é que os realizadores de "Blade Runner 2049" confundiram o correto objetivo de mostrar na tela um mundo ficcional dessensibilizado (como não poderia deixar de ser, em se tratando de "Blade Runner") com a necessidade de contar a história com um ar de frieza, quase indiferença, criando uma narrativa emocionalmente reprimida. Acidental ou intencional, o resultado neste particular é um evidente equívoco, incapaz de dialogar com a sutileza e delicadeza da obra original.


Infelizmente, não é apenas neste particular que "Blade Runner 2049" realiza a alquimia inversa de transmutar ouro em chumbo. A substituição dos replicantes Nexus 6 pela apenas-agora-revelada linha Nexus 8 se revela um péssimo recurso narrativo, obviamente criado com o único e exclusivo propósito de explicar a existência de replicantes envelhecidos (como, muito possivelmente, vem a ser o caso do próprio personagem Rick Deckard - agora interpretado por um Harrison Ford de 75 anos de idade). Os "Nexus 8" são idênticos aos "Nexus 6" em tudo, exceto pelo fato de que não possuem mais um tempo de vida restrito e pré-estipulado.

Evidentemente, isso joga na privada toda a riquíssima filosofia existencial característica do primeiro filme. Não à toa, a questão da mortalidade - central no primeiro filme - é agora substituída pela questão da liberdade. Trata-se de um tema que, no filme original, era importante, porém secundário. No filme de 1982, quando o grupo de replicantes liderados por Roy Batty (Rutger Hauer) se amotina e se vê livre dos grilhões da escravidão, eles não fogem para algum lugar distante para desfrutar de sua preciosa liberdade: eles vêm para a Terra, sabendo que irão enfrentar os maiores perigos imagináveis, na esperança de encontrar seu criador (o Deus da bioengenharia, Dr. Eldon Tyrell) em busca de longevidade. A luta dos replicantes Nexus 6 era mais do que uma mera luta contra a tirania da escravidão: era uma luta contra a tirania da mortalidade, fechando por completo o círculo que em última instância torna os replicantes tão inteiramente (e intensamente) humanos quanto qualquer um de nós


Ao investir sua narrativa nos "novos" Nexus 8, "Blade Runner 2049" não tem alternativa senão descartar todo o existencialismo e a filosofia do filme original, concentrando seu argumento no replicante-enquanto-problema-político-e-social. Em outras palavras: ao final das contas, o replicante Nexus 8 é um verdadeiro minus simbólico em relação ao replicante Nexus 6 do filme original. Ele mantém as implicações e questionamentos de natureza social e política, que já eram inerentes ao Nexus 6, mas perde por completo a dimensão existencial. Depois de compreender isso, é impossível se admirar com o fato de que o resultado geral de "Blade Runner 2049" é naturalmente muito menos interessante, provocativo e evocativo do que a consagrada obra-prima original.


A consequência direta desta perda da dimensão existencial-filosófico-religiosa em prol de um argumento centrado no aspecto político-social é muito clara. Na segunda metade do filme, fica evidente que "Blade Runner 2049" pretende empurrar este universo ficcional na direção de uma "planetadosmacacoslização" da franquia, só que com replicantes no lugar dos macacos inteligentes criados pela humanidade.

Se os lucros de bilheteria tornarem "Blade Runner 2049" um sucesso comercial, podemos esperar para os próximos anos uma série de sequências na melhor "vibe" do tipo "A Rebelião dos Replicantes", "A Batalha pelo Planeta dos Replicantes", "A Conquista do Planeta dos Replicantes" e por aí vai. Nada de novo, vale dizer. A perceptível influência da atual (e comercialmente muito bem sucedida) trilogia remake "Planeta dos Macacos", no argumento de "Blade Runner 2049", não deixa de ser uma amarga ironia. Vale lembrar que "O Planeta dos Macacos" (a obra prima original de 1968) foi a primeira pérola do cinema de ficção-científica grotescamente arruinada e desfigurada por uma sucessão de continuações oportunistas de má qualidade. 


Outra característica interessante de "Blade Runner 2049" é que o filme parece funcionar, simultaneamente, como duas produções distintas. Poderíamos chamar a primeira delas de "Blade Runner II - O Que Aconteceu com Deckard e Rachel?" (ou quem sabe "Blade Runner II - Procura-se Deckard Desesperadamente!"). Essa dimensão do filme se mostra obsessivamente preocupada não apenas em reintroduzir nas telonas o universo ficcional da película original, mas sobretudo em funcionar como uma legítima e literal CONTINUAÇÃO do clássico de 1982. À toda evidência, o lado "Blade Runner II" do filme é o que menos funciona. Este aspecto do filme tenta se legitimar na base de sucessivas escolhas artisticamente pobres - desde a desnecessária presença de Harrison Ford no filme (vale dizer: a passeio, mal justificando sua inclusão na história e marcando presença quase na forma descompromissada de uma aparição "cameo") até a adoção do forçado recurso narrativo de transformar a prole de Deckard e Rachel no novo Messias do povo replicante, passando pela injustificável e imediatamente esquecível "ressurreição" de Rachel - uma desnecessária e gratuita exibição de poder de computação gráfica, estéril e inútil para o desenvolvimento da história. 

Mas não, nem tudo são equívocos em "Blade Runner 2049". Há uma segunda dimensão do filme que funciona muito bem. Poderíamos chamá-la de "Blade Runner Remake" ou "Blade Runner Updated". Esta dimensão do filme abrange tudo o que é novo e original na reimaginação deste universo ficcional, e este aspecto da produção se revela cheio de boas ideias. O relacionamento afetivo entre o Blade Runner replicante K e a inteligência artificial Joi, melhor desenvolvido, poderia ter rendido um filme maravilhoso. O ambicioso e megalomaníaco gênio-monstro Niander Wallace é um personagem fantástico, trazido à vida de forma competente por Jared Leto, e suplica maior tempo de tela. Os dilemas de K, replicante consciente de sua natureza e lutando para apaziguar o seu conflito interno de exterminador de replicantes, constitui uma forma nova e interessante de trabalhar algumas das questões do primeiro filme. Seja pela fotografia maravilhosa, seja pela competência em reapresentar o mundo de Blade Runner para uma nova geração depois de 35 anos, esta dimensão criativa, original e audaciosa de "Blade Runner 2049" reúne dentro de si tudo aquilo que faz o filme valer a pena. Infelizmente, o lado "Blade Runner Updated" precisa dividir espaço com o sofrível lado "Blade Runner II", e o resultado desta problemática fusão compromete severamente o resultado artístico final.


Em síntese, "Blade Runner 2049" é (por seus próprios méritos e sem necessidade de comparações injustas com a obra-prima original) um filme de ficção-científica muito acima da média e que atualiza com sucesso o universo "Blade Runner" para o público de 2017. Infelizmente, seu compromisso de funcionar como "continuação direta" do filme de 1982 o leva a comprometer severamente as suas potencialidades criativas e o desenvolvimento de seu próprio argumento. Pior: suas escolhas sofríveis sinalizam um futuro previsível e banal para as histórias de filmes futuros que venham na esteira do sucesso de "Blade Runner 2049". Resta torcer para que eventuais continuações tenham a coragem de ousar mais, em termos criativos, sem transformar Blade Runner em um derivado aborrecido de "O Planeta dos Macacos", nem em uma "franquia" propriamente dita. Franquias são boas para lanchonetes, não para grandes obras de arte - coisa que o tempo mostrou, para além de qualquer possibilidade de dúvida razoável, que o "Blade Runner" original de fato é.