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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

NASTY!

Aí vai uma ótima sugestão de diversão retrô para o Halloween: o episódio Nasty, da antiga série britânica The Young Ones.

The Young Ones é um ícone da cultura pop britânica dos anos 1980. A série, que foi exibida originalmente entre 1982 e 1984, teve apenas 12 episódios (este formato curto é relativamente comum em séries do Reino Unido) e era centrada nas desventuras de quatro estudantes universitários que dividiam uma casa. Os personagens principais eram o punk Vyvyan, o anarquista Rik, o hippie depressivo Nigel e o inescrupuloso e "cool" Mike. 

Em Nasty, a série parodiava o pânico moral que tomou conta do Reino Unido no começo da década de 80, com a chegada no mercado de VHS de diversos filmes de horror e de violência explícita que escapavam das normas de censura etária até então existentes -  frequentemente chegando, por conta disso, às mãos de crianças e adolescentes. Esses filmes de terror condenados pela crítica conservadora da época ganharam a alcunha pejorativa de video nasty, ou seja, vídeos "desagradáveis", "sórdidos" ou "repulsivos".

Após uma abertura que parodia o estilo e a atmosfera do cinema de horror britânico clássico dos anos 1950 e 1960, o episódio começa com Vyvyan, Rik, Nigel e Mike em um cemitério, carregando o caixão de uma pessoa não identificada. 

 

Ao chegar na sepultura preparada para o enterro, eles dão boas vindas a um padre alcoólatra (interpretado pelo saudoso e inesquecível Terry Jones, um dos gênios da  incomparável trupe humorística Monty Python) que irá realizar a cerimônia fúnebre. 

 

Após alguns conflitos retóricos, o quarteto começa a explicar a cadeia de eventos que os levou até aquele momento - e tudo remonta ao instante em que eles decidiram alugar um vídeo-cassete para assistir um filme escabroso de terror ("video nasty") em VHS.

É até difícil descrever em palavras todo o nonsense anárquico do episódio, que conta com: a aparição de um vampiro que tenta convencer o grupo de que é apenas um instrutor de direção; alfinetadas na política conservadora britânica da época ("the bathroom is free, unlike the country" - com o personagem Rick chamando o governo da época de "junta thatcherista"; trocadilhos com o clássico Ashes to Ashes de David Bowie; cenas satirizando o icônico filme O Sétimo Selo de Ingmar Bergman e, acima de tudo, com a participação especial da lendária banda de gothic punk The Damned, tocando no estúdio a música Nasty - que a banda escreveu especialmente para este episódio!

O episódio "Nasty" foi ao ar pela primeira vez em 29 de maio de 1984. Quase quarenta anos depois, ainda é uma ótima diversão - e um pedaço da história da cultura pop britânica.

O Caveira recomenda. E lembre-se: "Only pop music can save us now!"

 


terça-feira, 6 de outubro de 2020

SEXTA-FEIRA 13 - A SÉRIE (1987-1990)

 

Há poucos dias, decidi finalmente dedicar algum tempo para conhecer uma série de horror sobre a qual ouço falar desde criança, mas que nunca havia recebido minha atenção até então: Friday the 13th - The Series. Aqui no Brasil, a série é conhecida como Sexta-Feira 13 - O Legado ou Sexta-Feira 13 - A Série.

Admito: lá no comecinho dos anos 1990, quando eu passava horas em cada locadora da cidade investigando cada caixinha de VHS nas prateleiras, as "fitas" contendo episódios desta série me deixavam com um misto de medo e curiosidade. Cada um dos VHS nacionais reunia dois episódios da série, e a arte era excelente e provocativa.


Apesar disso, meu interesse em conhecer a série desapareceu, na época, à medida em que compreendi que ela não tinha absolutamente nada a ver com os famosos filmes estrelados pelo serial killer Jason.

Sim, é isso aí mesmo: esqueça Jason, esqueça o camping Crystal Lake, esqueça a mãe do Jason matando adolescentes fazendo vozinha de maluca e sussurando "Mata ela, mamãe". Esqueça Tommy Jarvis, esqueça Jason voltando dos mortos por causa de um raio, esqueça Jason dando rolê em Nova York. A série de TV "Sexta-Feira 13" não tem NENHUMA relação temática ou narrativa com a série de filmes oitentistas que hoje são clássicos do gênero slasher.

 

Ora, mas qual é o sentido de fazer uma série chamada "Sexta-Feira 13" que não tem nada a ver com os filmes? O "sentido" aqui, é claro, é a boa e velha vontade de encher os bolsos de dinheiro. A série foi concebida por Frank Mancuso Jr, que foi produtor de cinco filmes da franquia. A ideia original era chamar a série de The 13th Hour, mas Mancuso pensou - com toda a razão - que atrelar a nova série de TV ao nome da franquia de filmes de horror mais famosa dos anos 1980 ajudaria muito a chamar a atenção do público para o novo show. Por óbvio, ele tinha razão.


Talvez seja este o principal fator que sempre me afastou, ao longo de todos estes anos, de Sexta-Feira 13 - A Série. Parecia se tratar apenas de uma desculpa esfarrapada para alguém em Hollywood encher os bolsos de dinheiro em cima dos fãs de Jason Voorhees.

No entanto, agora que estou tratando de conhecer a série, posso atestar que esse preconceito inicial que eu sempre tive contra ela não procede. Deixe o nome oportunista da série de lado e você terá uma das melhores antologias de horror já feitas para a televisão em todos os tempos. 


Na trama, dois jovens primos - Micki e Ryan - herdam do falecido tio uma sinistra loja de antiguidades. O que parecia um inesperado presente acaba se revelando como o mais infernal dos abacaxis quando a dupla descobre que o seu finado tio fez um pacto com forças ocultas e que, em busca da imortalidade (hmmm ... não deu muito certo, né?), começou a vender dezenas de objetos amaldiçoados por aí, para diferentes pessoas. 


Essas bugigangas carregadas de maldições representam a morte certa para seus compradores (ou para pessoas próximas a eles). Cientes deste fato, Micki e Ryan decidem examinar todas as vendas de antiguidades diabólicas documentadas nos registros do velho tio e estabelecem a missão de reaver todos e cada um deles, para que sejam armazenados em segurança num depósito especial no subsolo da loja. Nesta missão, a dupla será auxiliada por um velho amigo do falecido: o especialista em ocultismo Jack Marshak.


Sexta-Feira 13 - A Série teve 3 temporadas, com um total de 72 episódios. Enquanto esteve no ar, recebeu bastante reconhecimento e hoje é lembrada não apenas como uma ótima série televisiva de horror, mas também como uma influência importante para shows posteriores como Buffy the Vampire Slayer, Angel, Warehouse 13 (cuja premissa era simplesmente uma cópia descarada de Sexta-Feira 13 - A Série) e até mesmo para The X-Files - a mais cultuada e aclamada série de TV dos anos 1990.

 
O cancelamento abrupto da série, na terceira temporada, impediu que o arco maior da trama fosse efetivamente concluído de forma planejada e satisfatória. Ainda assim, para os fãs de horror, "Sexta-Feira 13 - A Série" é diversão garantida com sua fórmula de boas histórias mórbidas somadas a doses generosas de violência gráfica (e até mesmo de sexualidade, em um episódio ou outro), coisa pouco comum em produções televisivas até então.
 


Mas, mesmo após todos estes anos, devo admitir que o que mais dá medo na série ainda são aquelas velhas capas das fitas VHS lançadas por aqui!

 

Claro, às vezes rolavam algumas altas mancadas no nosso mercado de vídeo nacional. Um exemplo hilário: em 1990, a CIC Vídeo lançou no mercado nacional o "filme" Profecias de Satã (The Prophecies), sem fazer qualquer menção à série de TV Sexta-Feira 13. O único "detalhe" é que este filme jamais existiu: na verdade, The Prophecies era o episódio duplo que abria a terceira temporada da série. Aqui no Brasil, este episódio em duas partes foi lançado em VHS como se fosse um filme - e sem qualquer relação com a série. Vai entender!


terça-feira, 24 de setembro de 2019

O Caveira analisa: "SHOCKER" (1989)


Pela primeira vez em 25 anos, revi "Shocker" (1989), dirigido pelo saudoso mestre Wes Craven. Quando vi o filme pela primeira vez, ali por volta de 1994 (numa exibição na Globo, provavelmente na "Tela Quente"), fiquei bastante impressionado pelas cenas brutais de violência e por alguns sustos dignos de nota. Olhando agora, em retrospecto, o que mais chama a atenção em "Shocker" é o quanto o filme é irregular.


Não há nada de errado, é claro, em misturar terror com humor e violência com nonsense. Os anos 80, aliás, foram repletos de filmes hollywoodianos nessa linha - o que levou até mesmo à criação do termo "terrir", para fazer referência a filmes que ficavam em uma zona cinzenta entre a comédia e o horror. Para mim, "Fright Night" ("A Hora do Espanto", de 1985), "Gremlins" (1984) e "Sexta-Feira 13 Parte VI - Jason Vive" (1986) talvez sejam os exemplares mais perfeitos do "terrir" oitentista.


Mas a mistura não funciona bem em "Shocker". Os momentos de terror e violência são brutalmente sérios, quase aflitivos e dramáticos demais, ao passo que os momentos de humor são de um nonsense que chega às raias da comédia pastelão. Os últimos quinze ou vinte minutos do filme são tão risivelmente ridículos e tão esdrúxulos, do ponto de vista narrativo, que o espectador se sente como se alguém tivesse trocado de canal, tirado do filme e colocado em um desenho animado antigo estilo Looney Tunes. Assim como uma Ferrari vai de 0 a 100 km/h em 3 segundos, "Shocker" vai do drama sobrenatural e do slasher sanguinolento para o besteirol completo mais ou menos na mesma velocidade.

Talvez "Shocker" seja o melhor exemplo, até hoje, de um filme de horror que começa muito bem, mas que desanda por completo da metade para o final.

Apesar disso, há uma série de coisas interessantes e dignas de notas no filme. Vamos a elas!

A temática do serial killer que transcende o mundo material e se converte em um assassino espectral, em última instância, é claramente uma reimaginação dos principais elementos do clássico "A Nightmare on Elm Street" ("A Hora do Pesadelo", de 1984), a obra máxima de Craven. 


A ideia do assassino que tem o poder de trocar de corpos e de possuir pessoas possivelmente foi a inspiração direta para "Jason Goes to Hell: The Final Friday", de 1993 (o nono filme da cinessérie "Sexta-Feira 13").

Já o conceito do assassino em série que continua colecionando vítimas, mesmo após a sua execução na cadeira elétrica, lembra muito o argumento do excelente "The Frighteners" ("Os Espíritos", de 1996) de Peter Jackson - um dos meus filmes de terror favoritos de todos os tempos.

Ah, e não dá para deixar de observar que a ideia de um fantasma saindo de aparelhos de televisão para matar pessoas aparece em "Shocker" nove anos antes de a assusstadora menina espectral Sadako dar as caras pela primeira vez no horror japonês "Ringu" (1998), que em 2002 ganhou um remake americano pelas mãos do diretor Gore Verbinski. Aliás, o livro que deu origem ao filme (de autoria de Koji Suzuki) foi lançado em 1991 - portanto, na época em que "Shocker" era um filme de horror contemporâneo. Será que rolou alguma inspiração ou influência da película de Craven?


Também vale registrar que é muito divertido ver o ator Mitch Pileggi como um serial killer insano com poderes sobrenaturais, em total contraste com a figura contida e sóbria do personagem que celebrizou o ator anos depois - o diretor-assistente do FBI Walter Skinner, de "Arquivo X".


Uma curiosidade: a música tema ("Shocker") é obra da banda The Dudes of Wrath. Nunca ouviu falar? Não se preocupe. Nem você e nem ninguém já ouviu falar dessa "banda". Na verdade, a "The Dudes of Wrath" só gravou essa única música, e era integrada por Paul Stanley (do KISS), pelo produtor Desmond Child, pelos guitarristas Vivian Campbell (Def Leppard) e Guy Mann-Dude, pelo baixista Rudy Sarzo (Whitesnake) e pelo baterista Tommy Lee (Mötley Crüe). Tá bom ou quer mais? De fato, uma super banda. E a faixa, é preciso reconhecer, até que é bem legalzinha. Na verdade, a trilha sonora oficial acaba sendo melhor do que o próprio filme, contando ainda com o excelente cover (feito especialmente para o filme!) de "No More Mr. Nice Guy" do Alice Cooper, pelas mãos sempre habilidosas do Megadeth. A trilha oficial contava também com músicas de Iggy Pop, Bonfire, Saraya, Dangerous Toys, Voodoo X e Dead On.


Pois bem, vamos à trama do filme! É o seguinte: Horace Pinker é um serial killer que está aterrorizando uma cidade, tendo cometido dezenas de homicídios e iludido a polícia local de forma brilhante. Finalmente capturado pela polícia, o homicida é executado na cadeira elétrica. O problema é que Pinker, além de assassino serial nas horas vagas, era também um ativo praticante de magia negra. Graças aos seus conhecimentos sobre ocultismo, a destruição de seu corpo físico acaba sendo apenas o começo do pesadelo dos moradores da cidade.

As cenas que eu considerava como as mais assustadoras, quando vi o filme pela primeira vez na adolescência, eram aquelas em que o fantasma da namorada do protagonista aparecia do nada para orientá-lo ou ajudá-lo. Essas cenas não parecem nem um pouco impressionantes para os padrões atuais, embora o "timing" da aparição talvez possa causar alguns sustos rápidos nos espectadores contemporâneos. De qualquer forma, a sanguinolência e brutalidade estética de "Shocker" ainda impressionam, e o filme apresenta várias cenas de "splatter" bastante explícito, que merecem uma conferida. Aliás, pensando nisso, é espantoso que esse filme, nos anos 90, tenha sido exibido na TV aberta em horário nobre. Não imagino isso sendo possível nos dias atuais.


Enfim, "Shocker" merece uma conferida não apenas por ser um trabalho de Craven, um dos mais lendários e cultuados diretores do gênero, mas também pelas várias boas ideias e cenas que são construídas ao longo da trama. É uma pena que todas as qualidades são severamente comprometidas por um roteiro irregular e incoerente e pela aparente indecisão dos realizadores sobre o estilo e a atmosfera do filme. "Shocker" tenta ser tudo ao mesmo tempo (slasher brutal, drama, mistério, horror sobrenatural, comédia nonsense e filme adolescente com pegada "hard rock"), e o resultado é uma mistura ruim, incoerente e mal desenvolvida.


Segundo o "Guia de Vídeo - Terror", de Guilhermo de Martino (1996, Editora Escala), o filme é uma "tentativa do veterano Craven de criar um novo Freddy Krueger, desta vez fazendo uso da sempre discutida carga de violência apresentada pela televisão e utilizando a mesma idéia de 'The Indestructible Man' ('O Homem Indestrutível', 1956), estrelado por Lon Chaney Jr. Começa bem, mas é difícil aceitar o final, quando herói e vilão duelam comicamente através de noticiários e programas de TV, usando um controle remoto como arma!".

Bota difícil nisso!



NOTA DO CAVEIRA: 

 

sábado, 31 de março de 2018

Review do Caveira: "2019 - Depois da Queda de Nova York" (1983)


"Fuga de Nova York", dirigido por John Carpenter e lançado em 1981, é um dos meus filmes favoritos de todos os tempos e um clássico da ficção científica distópica do cinema. Cultuado e influente, o filme legou para a cultura pop o icônico personagem Snake Plissken (interpretado por Kurt Russell), que inclusive inspirou um dos heróis mais famosos dos videogames das últimas décadas - o "Snake" (em suas diferentes encarnações) da série Metal Gear Solid.

Mas a verdade é que "Fuga de Nova York" não inspirou apenas trabalhos bem sucedidos e famosos. O clássico de Carpenter também serviu de inspiração direta para um filme italiano relativamente obscuro, que não fez muito barulho na sua época e que hoje encontra-se no limiar do esquecimento completo: "2019 - Depois da Queda de Nova York".


Lançado em 1983, com versões faladas em inglês (2019, After the Fall of New York) e italiano (2019 - Dopo la caduta di New York), este filme dirigido por Sergio Martino é uma curiosidade histórica digna de nota. Elementos de "Fuga de Nova York", "Mad Max" e "O Planeta dos Macacos" são misturados em uma história completamente aloprada, que tenta emular a atmosfera distópica e pós-apocalíptica do filme de John Carpenter.

Três semelhanças com "Fuga de Nova York" saltam aos olhos. Primeira, o cenário: uma Nova York futurista e semi-destruída. A diferença pontual é que, enquanto o filme de Carpenter se passava no "distante futuro" de 1997, a resposta italiana de Sergio Martino é ambientada em 2019.


Segunda semelhança, e talvez a mais cômica e divertida de todas: o herói. O protagonista Parsifal é um escancarado Snake Plissken "wannabe". Michael Sopkiw emula com relativa competência o look de galã de Kurt Russell, o jeitão de "bad boy" e o ar "não estou nem aí" de anti-herói, típicos de Snake. O grande problema é a canastrice. Enquanto Russell é um ótimo ator, o mesmo simplesmente não pode ser dito de Sopkiw. Dos vários momentos de atuações exageradas e amadoras registrados na película, certamente alguns dos mais hilários são protagonizados por Sopkiw. Ele tem o visual correto e os trejeitos de anti-herói, mas lhe faltam por completo as habilidades de ator.


Terceira semelhança: assim como Snake em "Fuga de Nova York", também Parsifal é chamado pelas autoridades para liderar uma missão secreta de infiltração em Nova York. O objetivo da missão, no entanto, não poderia ser mais distinto. Enquanto Snake precisava localizar e resgatar o Presidente dos Estados Unidos depois de um ataque terrorista ao Air Force One, a missão de Parsifal é localizar a última mulher fértil do mundo - que está em algum lugar da Nova York pós-apocalíptica.

"Última mulher fértil do mundo"? Espera aí que eu explico: vinte anos antes dos eventos do filme, uma guerra global transformou o planeta inteiro em ruínas radioativas. O mundo inteiro está devastado, as pessoas sofrem de doenças e mutações e a fertilidade desapareceu. Nenhuma criança nasceu nos últimos quinze anos e ...

Êpa, a gente já viu um argumento semelhante em outro filme posterior, não é mesmo? Será que o aclamado "Children of Men" (2006) de Alfonso Cuarón e o livro de 1992 que o inspirou foram buscar, neste obscuro filme-B italiano, a ideia do "mundo no qual não nascem mais crianças"? Provavelmente não. Mas ficamos livres para conjecturar.

Seguindo: além do mundo destruído e contaminado e da humanidade infértil, os americanos têm ainda mais um problema na trama desta pérola italiana. É que uma força político-militar chamada Euraks unificou as antigas Europa, Ásia e África, e estende agora os seus exércitos para dominar os antigos Estados Unidos. Os Euraks já são os governantes de fato de Nova York, e passam os seus dias com atividades recreativas como chacinar pessoas a esmo e levar algumas cobaias para testes laboratoriais diversos, nos quais os Euraks buscam desesperadamente alguma maneira de salvar a humanidade e restabelecer a fertilidade e a reprodução.


Mas isso não significa que os americanos foram varridos do mapa. Depois do aperto, o que sobrou do governo americano é transferido para um quartel general secreto ... no Alaska. É, no Alaska. Com um visual que lembra um pouco a Fortaleza da Solidão do Superman. Neste QG secreto altamente sofisticado, o Presidente da Federação Americana está trabalhando na rearticulação das tropas americanas, para botar para correr os invasores Euraks.

O governo americano escondido no Alaska tem mais um plano audacioso: estabelecer uma nova colônia humana ... em Alpha Centauri! Ali pertinho, sabe? Tipo, a 4 anos-luz do Sol. É pegando ali a saída do nosso Sistema Solar, logo à direita.

Para realizar este plano ambicioso, o governo secreto americano conta com uma nave espacial que parece saída de algum episódio de Jornada nas Estrelas. Mas é claro que nada disso servirá para nada se os colonos humanos não puderem se reproduzir. E é por isso que Parsifal recebe a missão de resgatar a última mulher fértil do mundo e trazê-la até a nave.


Em um roteiro completamente pirado, com mais furos do que um queijo suíço, este ponto é um dos que mais chamam a atenção do espectador. Estamos em um ano 2019 distópico no qual as pessoas têm armas de raios laser, naves sofisticadas que mais parecem tecnologia alienígena e até mesmo condições de estabelecer uma colônia humana em Alpha Centauri. Mas, inexplicavelmente, os humanos foram capazes de desenvolver toda essa tecnologia digna de "Buck Rogers no Século XXV" ao mesmo tempo em que não evoluíram absolutamente um centímetro sequer em direção à reprodução humana em laboratório. No ano 2019 em que vive Parsifal, a tecnologia de reprodução em laboratório parece quase ter regredido em relação ao ano de 1983 no qual o filme foi lançado. Vai entender...

Também é curioso que o governo secreto dos EUA tenha conhecimento, como fato, de que a "última" mulher fértil do mundo estaria escondida em algum lugar nas ruínas de Nova York. O filme nem sequer tenta explicar de que forma estas autoridades teriam chegado em tal conclusão. Também não fica claro como é que essa gente escondida no Alaska poderia saber do paradeiro de uma moça escondida em Nova York, especialmente quando se trata de (WARNING: SPOILER ALERT!!!) ... uma jovem que está sendo mantida em coma induzido pelo pai há vinte anos! Ora, como é que alguém poderia saber da existência dela? Pior: como é que alguém poderia saber se ela é fértil ou não, se passou a vida inteira escondida pelo pai e em coma?


Pois é: esse filme é doido!

Para realizar a sua missão (e para a premissa ficar pelo menos um pouquinho diferente de "Fuga de Nova York"), o herói dessa vez não será infiltrado sozinho. Ao contrário de Snake Plissken, que trabalha sozinho, o seu gêmeo italiano Parsifal vai acompanhado de outros dois soldados. Um deles tem uma mão robótica e o outro usa um tapa-olho. É, um tapa-olho, parecido com o do Snake. Aparentemente, os realizadores de "2019" acharam que seria uma imitação muito escancarada colocar um tapa-olho em Parsifal, e então resolveram caracterizar o protagonista com uma bandana na testa (para deixar o cabelo mais estiloso) e passaram o tapa-olho para o colega de Parsifal. Fantástico!

O curioso sobre "2019" é que, ao contrário do que se poderia pensar em um primeiro momento, não é o orçamento apertado que estraga o filme. De forma alguma. Apesar de ser claramente um filme B com atmosfera trash, a produção foi feita com visível e notável esmero. Tirando alguns efeitos especiais de maquetes que simplesmente não restaram convincentes, de resto a produção do filme realiza a proeza de criar uma ambientação adequada de mundo pós-apocalíptico e que se mostra à altura das ambições narrativas do filme. O diretor Sergio Martino e sua equipe, aqui, fizeram muito com muito pouco.


O que realmente detona "2019" (e certamente está na raiz do seu fracasso comercial e posterior desaparecimento) é o roteiro rocambolesco e risível, que precisaria ter passado por pelo menos mais uma dúzia de revisões críticas antes do início da filmagem. É tanta coisa errada que fica até difícil de listar tudo. O espectador é apresentado a temáticas que simplesmente não se desenvolvem na tela, como a ideia de que o amor redime uma vida em meio à desesperança (um tema que é trabalhado apenas no final do filme, em dois minutos, e logo desaparece). O espectador é apresentado ao líder dos Euraks, em um dos momentos de melhor atuação do filme, apenas para descobrir posteriormente que ele só voltará em mais uma pequena cena posterior e que jamais dividirá a tela com o protagonista Parsifal. O espectador é apresentado, nos últimos minutos do filme, ao problema que Parsifal tem com ciborgues - mesmo com um que passou o filme inteiro salvando a pele do herói. Por que um ciborgue é necessariamente algo ruim, ainda que esteja lutando fielmente pela causa do mocinho? Só Deus sabe!

Enfim, o filme oferece uma infinidade de pontos de partida que não levam a lugar algum e que não são devidamente desenvolvidos, resultando numa salada mista de humanidade estéril pós-apocalipse, ciborgues, naves espaciais, homens-macaco (é, é isso aí mesmo, não vou nem começar...) e por aí vai. Para não falar de algumas opções estéticas esdrúxulas. Exemplifico: no mundo de "2019", praticamente todo mundo é feio, sujo, fedido e coberto de feridas e deformidades oriundas da radiação. Todo mundo - menos o galã Parsifal, a belíssima gata loira pela qual ele se apaixona ao longo da trama e a vilã Ania, intepretada por Anna Kanakis, modelo que foi a Miss Itália de 1977. O constraste entre a lindeza limpinha e cheirosa deste trio de beldades com o look sujismundo-encardido-mutante de todo o resto do elenco é uma das coisas mais cômicas do filme.


Um roteiro melhor, com muitas revisões, aliadas a um trabalho de atuação melhor, poderiam ter feito de "2019" um clássico europeu do cinema de ficção-científica. O resultado, no entanto, acaba sendo um clone de "Fuga de Nova York" em versão chá de cogumelo, com uma trama que parece ter sido concebida depois da mistura de um coquetel de drogas.

Em resumo: o filme é recomendável? Depende. Se você se enquadra naquilo que poderíamos chamar de "espectador médio", recomendo não ir atrás deste filme. Você ficará com a sensação de que colocou duas horas de sua vida no lixo. Mas, para quem é fã de filmes de horror e ficção-científica, e sobretudo para quem é fã de "Fuga de Nova York", este pseudo-clone italiano é absolutamente imperdível. Para este público, a diversão é garantida: tem sci-fi, tem aquela atmosfera de trash com filme B, tem muito sangue e splatter, tem efeitos "especiais" de rolar de rir, tem o "bad boy" Parsifal apanhando e sendo capturado sem parar (aliás, por que um cara que perde quase todas é apontado como "a última esperança" da humanidade)?


Claro, é preciso um pouco de estômago e de mente aberta também, na hora de encarar este filme. Afinal, não é todo dia que a gente vê uma moça em coma sendo estuprada por um homem-macaco que quer se reproduzir (graças a Deus, essa piração asquerosa gratuita e desnecessária não é exibida na tela, ficando apenas sugerida entre uma cena e outra). Vai entender a cabeça destes roteiristas que acharam que homens macaco, ciborgues, naves espaciais, um governo secreto no Alaska e um estupro de mulher em coma seriam elementos "indispensáveis" para a trama...


Louvável pelo tanto que constrói em cima de um orçamento tão pobre, admirável pelas suas pretensões e ambições e histericamente risível pela quantidade de absurdos narrativos e falta de noção e bom-senso dos roteiristas, "2019 - Depois da Queda de Nova York", vale uma conferida. Um pouco pela ambientação e atmosfera, um pouco pela ação, mas sobretudo pelos repetidos momentos de canastrice, exagero e nonsense absurdo, que fazem tudo resvalar para o farsesco e render boas risadas.




quarta-feira, 11 de outubro de 2017

"Blade Runner 2049" é competente, esforçado e esteticamente impecável, mas infelizmente passa no teste Voight-Kampff - e isso é um (grande) problema!

 

[Observação: contém SPOILERS!]

"Blade Runner", o clássico do cinema de ficção-científica lançado em 1982, lidava com uma série de questões filosóficas, religiosas, sociais e políticas. O filme transportava para as telas uma das mais permanentes indagações do escritor Philip K. Dick (autor de "Do Androids Dream of Electric Sheep?", o livro que inspirou o filme), qual seja: o que significa ser humano?

Na película de 1982, esta questão é ilustrada por meio da justaposição entre seres humanos e os replicantes, organismos sintéticos virtualmente indistinguíveis das pessoas normais. De forma paradoxal, mas igualmente brilhante, a única forma de distinguir os replicantes dos humanos, no universo ficcional de "Blade Runner", era através de um teste de empatia e de demonstração de emoções humanas. Isso porque os replicantes eram incapazes de emular a apatia, a indiferença, o niilismo, a frieza e a falta de empatia das pessoas "de carne em osso" em geral. Submetidos ao referido teste ("nós o chamamos de teste Voight-Kampff, para resumir", nas palavras do personagem Rick Deckard), os replicantes acabavam se revelando não-humanos justamente pelo seu "excesso" de sentimentos humanos. "Passar" no teste implicava em não se abalar emocionalmente. "Falhar" no teste significava demonstrar sentimentos, emoções e humanidade - algo impensável para os humanos adultos do universo do filme.

Em "Blade Runner 2049", a erosão ou desaparecimento dos sentimentos humanos parece ser menos um leitmotif da trama do que propriamente uma característica marcante da própria produção em si. Interessante e indiscutivelmente bem executado sob diversos aspectos, o calcanhar de Aquiles desta tardia continuação reside justamente na sua frieza, distanciamento e desapego emocional. Reconheço que estas características talvez sejam excelentes como forma de traduzir o espírito do nosso mundo real na presente década, mas funcionam muito mal dentro do universo ficcional inaugurado pelo filme de 1982, no qual a distopia, a desintegração social e as sombras do mau uso da tecnologia coexistem com a (sempre difícil) preservação das qualidades redentoras do perseverante espírito humano. 


"Blade Runner" apresentava uma delicada mistura de razão e emoção, lógica e paixão, inteligência e amor. Transitava livremente entre o deprimente-distópico e o romântico. Sua continuação, seja por incompreensão da obra original ou pela vontade deliberada de seus realizadores, passa longe dessa delicada receita. O resultado é um filme visualmente muito bonito e, em vários momentos, intelectualmente provocativo - mas distante, frio, plano como uma tela de monitor e desprovido de alma.

Esta atmosfera de assepsia emocional permeia "Blade Runner 2049" inteiramente, do todo às partes, da fotografia à música. A trilha sonora, assinada por Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, apesar de ter seus bons momentos, soa como uma versão diluída, derivativa e anêmica da trilha sonora original de "Blade Runner" de Vangelis. Em sua maior parte, a música é "presa", contida e distante, emocionalmente sedada, em contraste com a arrebatadora obra-prima de Vangelis. Deixo registrada a minha dúvida: se o objetivo era uma trilha "que soasse como Vangelis", por que não trazer de volta a maravilhosa e icônica trilha sonora do filme original? E, se o objetivo era partir para algo novo, por que trazer Hans Zimmer para assinar uma obra musical derivativa que soa como a trilha de Vangelis depois de diluída em um barril de água da torneira?

A mudez emocional de "Blade Runner 2049" pode ser identificada até nos detalhes. Enquanto que, no filme de 1982, uma das cenas mais emocionalmente arrebatadoras era protagonizada pela personagem de Sean Young tocando piano no apartamento de Deckard, em "Blade Runner 2049" a figura do piano reaparece meramente na condição de instrumento quebrado, incapaz de emitir quaisquer sons. Parece uma metáfora comparativa dos dois filmes.


Toda esta frieza narrativa, é claro, cobra um preço. Perto do final do filme, o personagem Deckard é colocado, em duas cenas distintas, diante de duas figuras amadas do seu passado. Em uma continuação que tivesse a competência de reproduzir de forma minimamente adequada a sensibilidade do filme original, ambas as cenas levariam o público (sobretudo os fãs do filme original) às lágrimas. Mas não é o que acontece. Quando "Blade Runner 2049" finalmente resolve investir algumas fichas em sentimentos, já é muito tarde para o espectador, que não é envolvido com os personagens em momento algum e se conecta com a história de forma tão apática e indiferente quanto as feições de Harrison Ford ao longo do filme. A sensação que dá é que os realizadores de "Blade Runner 2049" confundiram o correto objetivo de mostrar na tela um mundo ficcional dessensibilizado (como não poderia deixar de ser, em se tratando de "Blade Runner") com a necessidade de contar a história com um ar de frieza, quase indiferença, criando uma narrativa emocionalmente reprimida. Acidental ou intencional, o resultado neste particular é um evidente equívoco, incapaz de dialogar com a sutileza e delicadeza da obra original.


Infelizmente, não é apenas neste particular que "Blade Runner 2049" realiza a alquimia inversa de transmutar ouro em chumbo. A substituição dos replicantes Nexus 6 pela apenas-agora-revelada linha Nexus 8 se revela um péssimo recurso narrativo, obviamente criado com o único e exclusivo propósito de explicar a existência de replicantes envelhecidos (como, muito possivelmente, vem a ser o caso do próprio personagem Rick Deckard - agora interpretado por um Harrison Ford de 75 anos de idade). Os "Nexus 8" são idênticos aos "Nexus 6" em tudo, exceto pelo fato de que não possuem mais um tempo de vida restrito e pré-estipulado.

Evidentemente, isso joga na privada toda a riquíssima filosofia existencial característica do primeiro filme. Não à toa, a questão da mortalidade - central no primeiro filme - é agora substituída pela questão da liberdade. Trata-se de um tema que, no filme original, era importante, porém secundário. No filme de 1982, quando o grupo de replicantes liderados por Roy Batty (Rutger Hauer) se amotina e se vê livre dos grilhões da escravidão, eles não fogem para algum lugar distante para desfrutar de sua preciosa liberdade: eles vêm para a Terra, sabendo que irão enfrentar os maiores perigos imagináveis, na esperança de encontrar seu criador (o Deus da bioengenharia, Dr. Eldon Tyrell) em busca de longevidade. A luta dos replicantes Nexus 6 era mais do que uma mera luta contra a tirania da escravidão: era uma luta contra a tirania da mortalidade, fechando por completo o círculo que em última instância torna os replicantes tão inteiramente (e intensamente) humanos quanto qualquer um de nós


Ao investir sua narrativa nos "novos" Nexus 8, "Blade Runner 2049" não tem alternativa senão descartar todo o existencialismo e a filosofia do filme original, concentrando seu argumento no replicante-enquanto-problema-político-e-social. Em outras palavras: ao final das contas, o replicante Nexus 8 é um verdadeiro minus simbólico em relação ao replicante Nexus 6 do filme original. Ele mantém as implicações e questionamentos de natureza social e política, que já eram inerentes ao Nexus 6, mas perde por completo a dimensão existencial. Depois de compreender isso, é impossível se admirar com o fato de que o resultado geral de "Blade Runner 2049" é naturalmente muito menos interessante, provocativo e evocativo do que a consagrada obra-prima original.


A consequência direta desta perda da dimensão existencial-filosófico-religiosa em prol de um argumento centrado no aspecto político-social é muito clara. Na segunda metade do filme, fica evidente que "Blade Runner 2049" pretende empurrar este universo ficcional na direção de uma "planetadosmacacoslização" da franquia, só que com replicantes no lugar dos macacos inteligentes criados pela humanidade.

Se os lucros de bilheteria tornarem "Blade Runner 2049" um sucesso comercial, podemos esperar para os próximos anos uma série de sequências na melhor "vibe" do tipo "A Rebelião dos Replicantes", "A Batalha pelo Planeta dos Replicantes", "A Conquista do Planeta dos Replicantes" e por aí vai. Nada de novo, vale dizer. A perceptível influência da atual (e comercialmente muito bem sucedida) trilogia remake "Planeta dos Macacos", no argumento de "Blade Runner 2049", não deixa de ser uma amarga ironia. Vale lembrar que "O Planeta dos Macacos" (a obra prima original de 1968) foi a primeira pérola do cinema de ficção-científica grotescamente arruinada e desfigurada por uma sucessão de continuações oportunistas de má qualidade. 


Outra característica interessante de "Blade Runner 2049" é que o filme parece funcionar, simultaneamente, como duas produções distintas. Poderíamos chamar a primeira delas de "Blade Runner II - O Que Aconteceu com Deckard e Rachel?" (ou quem sabe "Blade Runner II - Procura-se Deckard Desesperadamente!"). Essa dimensão do filme se mostra obsessivamente preocupada não apenas em reintroduzir nas telonas o universo ficcional da película original, mas sobretudo em funcionar como uma legítima e literal CONTINUAÇÃO do clássico de 1982. À toda evidência, o lado "Blade Runner II" do filme é o que menos funciona. Este aspecto do filme tenta se legitimar na base de sucessivas escolhas artisticamente pobres - desde a desnecessária presença de Harrison Ford no filme (vale dizer: a passeio, mal justificando sua inclusão na história e marcando presença quase na forma descompromissada de uma aparição "cameo") até a adoção do forçado recurso narrativo de transformar a prole de Deckard e Rachel no novo Messias do povo replicante, passando pela injustificável e imediatamente esquecível "ressurreição" de Rachel - uma desnecessária e gratuita exibição de poder de computação gráfica, estéril e inútil para o desenvolvimento da história. 

Mas não, nem tudo são equívocos em "Blade Runner 2049". Há uma segunda dimensão do filme que funciona muito bem. Poderíamos chamá-la de "Blade Runner Remake" ou "Blade Runner Updated". Esta dimensão do filme abrange tudo o que é novo e original na reimaginação deste universo ficcional, e este aspecto da produção se revela cheio de boas ideias. O relacionamento afetivo entre o Blade Runner replicante K e a inteligência artificial Joi, melhor desenvolvido, poderia ter rendido um filme maravilhoso. O ambicioso e megalomaníaco gênio-monstro Niander Wallace é um personagem fantástico, trazido à vida de forma competente por Jared Leto, e suplica maior tempo de tela. Os dilemas de K, replicante consciente de sua natureza e lutando para apaziguar o seu conflito interno de exterminador de replicantes, constitui uma forma nova e interessante de trabalhar algumas das questões do primeiro filme. Seja pela fotografia maravilhosa, seja pela competência em reapresentar o mundo de Blade Runner para uma nova geração depois de 35 anos, esta dimensão criativa, original e audaciosa de "Blade Runner 2049" reúne dentro de si tudo aquilo que faz o filme valer a pena. Infelizmente, o lado "Blade Runner Updated" precisa dividir espaço com o sofrível lado "Blade Runner II", e o resultado desta problemática fusão compromete severamente o resultado artístico final.


Em síntese, "Blade Runner 2049" é (por seus próprios méritos e sem necessidade de comparações injustas com a obra-prima original) um filme de ficção-científica muito acima da média e que atualiza com sucesso o universo "Blade Runner" para o público de 2017. Infelizmente, seu compromisso de funcionar como "continuação direta" do filme de 1982 o leva a comprometer severamente as suas potencialidades criativas e o desenvolvimento de seu próprio argumento. Pior: suas escolhas sofríveis sinalizam um futuro previsível e banal para as histórias de filmes futuros que venham na esteira do sucesso de "Blade Runner 2049". Resta torcer para que eventuais continuações tenham a coragem de ousar mais, em termos criativos, sem transformar Blade Runner em um derivado aborrecido de "O Planeta dos Macacos", nem em uma "franquia" propriamente dita. Franquias são boas para lanchonetes, não para grandes obras de arte - coisa que o tempo mostrou, para além de qualquer possibilidade de dúvida razoável, que o "Blade Runner" original de fato é.    


quinta-feira, 13 de abril de 2017

O Caveira resenha: "Muck" (2015)

A ideia básica do terror "Muck" (2015), primeiro filme do diretor Steve Wolsh, até que é interessante: um "slasher movie" que começa com uma história pela metade, com um grupo de amigos já em sérios apuros e esfarrapados, em busca de socorro e que acabam se deparando com uma situação ainda pior ao longo da trama - tudo isso desembocando em um final abrupto e inconclusivo.

Aparentemente, a ideia de Wolsh é fazer uma trilogia, sendo que este primeiro filme seria "o meio" da história, cujo começo e conclusão só serão devidamente esclarecidos nos filmes posteriores. Excêntrico, talvez, mas até aí tudo bem. O problema é que todas as boas intenções se perdem com a trama ridícula, as atuações sofríveis e os diálogos risíveis. 

A canastrice é tão generalizada que se torna virtualmente impossível identificar se Wolsh quis mesmo fazer um filme de terror ou apenas uma paródia de filmes de terror. O resultado final ficou num meio-termo: é um terror ruim e uma comédia ruim. Depois de ver "Muck" até o fim, fiquei com a impressão de que Wolsh quis criar uma espécie de "cult movie" meio Robert Rodriguez, meio Tarantino. Se a ideia era essa, então - ó meu bom Deus - se trata de um sério caso de muita pretensão para pouco talento.

Mas o que torna o filme excessivamente bobo é, sem dúvida, a nudez gratuita de quase todo o elenco feminino. Por favor, não me entendam mal: não se trata de moralismo da minha parte. Tampouco desconheço o fato de que uma certa dose de erotismo sempre esteve ligada à arte de horror, desde muito antes do surgimento do cinema. O problema é que, em "Muck", a proliferação gratuita de seios e bundas é, além de forçada, simplesmente elevada à condição de coisa mais importante do filme ao longo de toda a "trama".

A obsessão de Wolsh com as cenas de nudez desvinculadas da narrativa faz surgir a dúvida: por que ele não dirigiu um "soft porn" ao invés de um filme de terror? O espectador fica com a impressão de que o filme foi dirigido por um menino pré-adolescente em combustão hormonal, do tipo que nunca viu uma mulher nua na vida. É constrangedor e patético - mais ou menos o que se esperaria de um filme de terror dirigido por Beavis e Butt-Head. 

Se a intenção era fazer um terror carregado de erotismo, então novamente o resultado denuncia a falta de maturidade dos realizadores. Erotismo e nudez gratuita são duas coisas completamente diferentes. O clássico do horror "The Hunger" ("Fome de Viver", de 1983) é dez mil vezes mais erótico do que "Muck". A diferença, aqui, é entre erotismo e onanismo.

Pontos positivos: alguns poucos momentos de humor que efetivamente funcionam; as cenas de luta bem dirigidas; o uso de efeitos práticos no lugar de computação gráfica fajuta; a qualidade de imagem e fotografia e a presença no elenco do ídolo Kane Hodder (amado pelos fãs de filmes de terror por ter interpretado Jason quatro vezes no cinema).

Vale à pena ver? Depende. Se você não é fã do gênero, passe longe. Se é fã, ainda assim só recomendo em caso de falta de opção melhor. Agora, se você curte o gênero e está reunido com uma turma de amigos bebendo cerveja a noite inteira, este é o tipo de filme ideal para ver de galera e rolar de tanto rir com os momentos de humor involuntário da produção. Para quem estiver disposto a deixar o senso crítico de lado por um par de horas, no conjunto "Muck" até oferece um pouquinho de entretenimento barato e diversão - mas não muito.


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O Caveira analisa: os dois primeiros episódios da nova minissérie de Arquivo X



Atenção: contém SPOILERS! Não continue lendo se você ainda não viu os novos episódios!

Antes de mais nada: fiquei feliz de rever a dupla de agentes do FBI mais amada da história da televisão. Anderson e Duchovny ainda conseguem criar aquela química perfeita entre os protagonistas. Foi muito bom rever Mulder e Scully e foi sensacional ver dois novos episódios de Arquivo-X, depois de quase quatorze anos. 

Sobre os episódios em si, as impressões e sentimentos são mistos.

É bom lembrar que essa nova minissérie será composta por um arco narrativo de seis episódios. Por isso, é importante ter em mente que não é possível avaliar a qualidade deste retorno da série com base apenas nestes dois primeiros. Aquilo que ainda veremos nos quatro episódios seguintes provavelmente mudará, para melhor ou para pior, a nossa percepção sobre estes dois episódios iniciais. 

Feita esta ressalva, é impossível escapar de observações críticas mais óbvias. O primeiro episódio, "My Struggle", é simplesmente uma bagunça e sofre de sérios problemas de andamento. Começa imensamente promissor, mas vai se tornando progressivamente mais anticlimático até chegar ao final, quando somos informados que a divisão Arquivo X do FBI foi subitamente reaberta (por qual razão? Sob a autoridade de quem? Como Mulder e Scully voltam magicamente a ser agentes do FBI da noite para o dia?) e tomamos conhecimento de que o mais memorável antagonista da série, o "Smoking Man" (que aqui no Brasil era ridiculamente chamado de "O Canceroso") ainda está vivo, apesar de o último episódio da série clássica, em 2002, ter mostrado detalhadamente, com direito a "close", que ele foi explodido com um míssil disparado em sua direção.

Tudo isso é perdoável. Uma pequena carência de detalhes aqui, uma ressurreição milagrosa acolá ... quem sabe ainda virá uma explicação razoável mais adiante? O que é menos digerível é a completa bagunça da trama do primeiro novo episódio. De uma hora para outra, somos apresentados a uma nova conspiração que contradiz grande parte do que a série original estipulava como canônico - e, em questão de minutos, vemos Mulder absolutamente convencido dessa "nova verdade" e desacreditando as conclusões de seu próprio trabalho de quase uma década no FBI. É duro de engolir - ainda mais porque a nova teoria conspiratória soa ainda mais inverossímil do que a anterior. A conspiração original era recheada de elementos fantásticos. A nova conspiração mantém a camada fantástica, mas adiciona uma nova camada que mistura os mais variados elementos de antiglobalismo, anticapitalismo, ultranacionalismo norte-americano e paranoia política e econômica. 

Ao final do primeiro episódio, não sabemos mais qual é a loucura "oficial" da trama - ou seja, se a nova piração é uma cortina de fumaça em torno da piração original ou se a piração original era uma cortina de fumaça em torno desta piração à qual somos apresentados agora. Se todo esse caos narrativo é uma forma genial de nos deixar confusos e imersos na história enquanto ela se desenvolve - ou se é apenas má técnica narrativa -, é coisa que só saberemos vendo os próximos quatro episódios.
Felizmente, o segundo episódio normaliza um pouco as coisas. Depois da vertigem de passar por aquele que é sério candidato a episódio mais esquisito e confuso de Arquivo-X de todos os tempos, somos na sequência confortavelmente apresentados a um episódio mais "normal", em estilo clássico, puro Arquivo-X dos anos 90 do começo ao fim, mas mantendo de forma sutil as conexões com a mitologia central da série e com o episódio anterior. De fato, se mostrou sábia e oportuna a decisão de exibir o segundo episódio logo depois do primeiro (com uma diferença de 24 horas, nos EUA, e ambos na mesma noite aqui no Brasil). O segundo episódio faz um belo serviço no sentido de dissipar a sensação de deslocamento e perplexidade causadas pelo primeiro episódio.

De qualquer forma, o certo é que nós, fãs da clássica série, temos todos os motivos do mundo para estarmos animados e empolgados com este tão sonhado retorno. Ainda é cedo para dizer mais coisas sobre este novo arco de seis episódios. Será apenas um breve "comeback" festivo, ou será o ensaio para um retorno triunfal de Arquivo-X com novas temporadas? Será um marco na mitologia da série, ou será apenas algo análogo a um spin-of oportunista? Vamos lembrar deles com carinho e excitação pelas próximas décadas, ou será apenas uma diversão rápida e descartável de verão? 

Ainda é cedo para dizer. A única coisa certa é que a verdade está lá fora. De novo. E isso, por si só, já é muito, muito legal.