sábado, 31 de março de 2018

Review do Caveira: "2019 - Depois da Queda de Nova York" (1983)


"Fuga de Nova York", dirigido por John Carpenter e lançado em 1981, é um dos meus filmes favoritos de todos os tempos e um clássico da ficção científica distópica do cinema. Cultuado e influente, o filme legou para a cultura pop o icônico personagem Snake Plissken (interpretado por Kurt Russell), que inclusive inspirou um dos heróis mais famosos dos videogames das últimas décadas - o "Snake" (em suas diferentes encarnações) da série Metal Gear Solid.

Mas a verdade é que "Fuga de Nova York" não inspirou apenas trabalhos bem sucedidos e famosos. O clássico de Carpenter também serviu de inspiração direta para um filme italiano relativamente obscuro, que não fez muito barulho na sua época e que hoje encontra-se no limiar do esquecimento completo: "2019 - Depois da Queda de Nova York".


Lançado em 1983, com versões faladas em inglês (2019, After the Fall of New York) e italiano (2019 - Dopo la caduta di New York), este filme dirigido por Sergio Martino é uma curiosidade histórica digna de nota. Elementos de "Fuga de Nova York", "Mad Max" e "O Planeta dos Macacos" são misturados em uma história completamente aloprada, que tenta emular a atmosfera distópica e pós-apocalíptica do filme de John Carpenter.

Três semelhanças com "Fuga de Nova York" saltam aos olhos. Primeira, o cenário: uma Nova York futurista e semi-destruída. A diferença pontual é que, enquanto o filme de Carpenter se passava no "distante futuro" de 1997, a resposta italiana de Sergio Martino é ambientada em 2019.


Segunda semelhança, e talvez a mais cômica e divertida de todas: o herói. O protagonista Parsifal é um escancarado Snake Plissken "wannabe". Michael Sopkiw emula com relativa competência o look de galã de Kurt Russell, o jeitão de "bad boy" e o ar "não estou nem aí" de anti-herói, típicos de Snake. O grande problema é a canastrice. Enquanto Russell é um ótimo ator, o mesmo simplesmente não pode ser dito de Sopkiw. Dos vários momentos de atuações exageradas e amadoras registrados na película, certamente alguns dos mais hilários são protagonizados por Sopkiw. Ele tem o visual correto e os trejeitos de anti-herói, mas lhe faltam por completo as habilidades de ator.


Terceira semelhança: assim como Snake em "Fuga de Nova York", também Parsifal é chamado pelas autoridades para liderar uma missão secreta de infiltração em Nova York. O objetivo da missão, no entanto, não poderia ser mais distinto. Enquanto Snake precisava localizar e resgatar o Presidente dos Estados Unidos depois de um ataque terrorista ao Air Force One, a missão de Parsifal é localizar a última mulher fértil do mundo - que está em algum lugar da Nova York pós-apocalíptica.

"Última mulher fértil do mundo"? Espera aí que eu explico: vinte anos antes dos eventos do filme, uma guerra global transformou o planeta inteiro em ruínas radioativas. O mundo inteiro está devastado, as pessoas sofrem de doenças e mutações e a fertilidade desapareceu. Nenhuma criança nasceu nos últimos quinze anos e ...

Êpa, a gente já viu um argumento semelhante em outro filme posterior, não é mesmo? Será que o aclamado "Children of Men" (2006) de Alfonso Cuarón e o livro de 1992 que o inspirou foram buscar, neste obscuro filme-B italiano, a ideia do "mundo no qual não nascem mais crianças"? Provavelmente não. Mas ficamos livres para conjecturar.

Seguindo: além do mundo destruído e contaminado e da humanidade infértil, os americanos têm ainda mais um problema na trama desta pérola italiana. É que uma força político-militar chamada Euraks unificou as antigas Europa, Ásia e África, e estende agora os seus exércitos para dominar os antigos Estados Unidos. Os Euraks já são os governantes de fato de Nova York, e passam os seus dias com atividades recreativas como chacinar pessoas a esmo e levar algumas cobaias para testes laboratoriais diversos, nos quais os Euraks buscam desesperadamente alguma maneira de salvar a humanidade e restabelecer a fertilidade e a reprodução.


Mas isso não significa que os americanos foram varridos do mapa. Depois do aperto, o que sobrou do governo americano é transferido para um quartel general secreto ... no Alaska. É, no Alaska. Com um visual que lembra um pouco a Fortaleza da Solidão do Superman. Neste QG secreto altamente sofisticado, o Presidente da Federação Americana está trabalhando na rearticulação das tropas americanas, para botar para correr os invasores Euraks.

O governo americano escondido no Alaska tem mais um plano audacioso: estabelecer uma nova colônia humana ... em Alpha Centauri! Ali pertinho, sabe? Tipo, a 4 anos-luz do Sol. É pegando ali a saída do nosso Sistema Solar, logo à direita.

Para realizar este plano ambicioso, o governo secreto americano conta com uma nave espacial que parece saída de algum episódio de Jornada nas Estrelas. Mas é claro que nada disso servirá para nada se os colonos humanos não puderem se reproduzir. E é por isso que Parsifal recebe a missão de resgatar a última mulher fértil do mundo e trazê-la até a nave.


Em um roteiro completamente pirado, com mais furos do que um queijo suíço, este ponto é um dos que mais chamam a atenção do espectador. Estamos em um ano 2019 distópico no qual as pessoas têm armas de raios laser, naves sofisticadas que mais parecem tecnologia alienígena e até mesmo condições de estabelecer uma colônia humana em Alpha Centauri. Mas, inexplicavelmente, os humanos foram capazes de desenvolver toda essa tecnologia digna de "Buck Rogers no Século XXV" ao mesmo tempo em que não evoluíram absolutamente um centímetro sequer em direção à reprodução humana em laboratório. No ano 2019 em que vive Parsifal, a tecnologia de reprodução em laboratório parece quase ter regredido em relação ao ano de 1983 no qual o filme foi lançado. Vai entender...

Também é curioso que o governo secreto dos EUA tenha conhecimento, como fato, de que a "última" mulher fértil do mundo estaria escondida em algum lugar nas ruínas de Nova York. O filme nem sequer tenta explicar de que forma estas autoridades teriam chegado em tal conclusão. Também não fica claro como é que essa gente escondida no Alaska poderia saber do paradeiro de uma moça escondida em Nova York, especialmente quando se trata de (WARNING: SPOILER ALERT!!!) ... uma jovem que está sendo mantida em coma induzido pelo pai há vinte anos! Ora, como é que alguém poderia saber da existência dela? Pior: como é que alguém poderia saber se ela é fértil ou não, se passou a vida inteira escondida pelo pai e em coma?


Pois é: esse filme é doido!

Para realizar a sua missão (e para a premissa ficar pelo menos um pouquinho diferente de "Fuga de Nova York"), o herói dessa vez não será infiltrado sozinho. Ao contrário de Snake Plissken, que trabalha sozinho, o seu gêmeo italiano Parsifal vai acompanhado de outros dois soldados. Um deles tem uma mão robótica e o outro usa um tapa-olho. É, um tapa-olho, parecido com o do Snake. Aparentemente, os realizadores de "2019" acharam que seria uma imitação muito escancarada colocar um tapa-olho em Parsifal, e então resolveram caracterizar o protagonista com uma bandana na testa (para deixar o cabelo mais estiloso) e passaram o tapa-olho para o colega de Parsifal. Fantástico!

O curioso sobre "2019" é que, ao contrário do que se poderia pensar em um primeiro momento, não é o orçamento apertado que estraga o filme. De forma alguma. Apesar de ser claramente um filme B com atmosfera trash, a produção foi feita com visível e notável esmero. Tirando alguns efeitos especiais de maquetes que simplesmente não restaram convincentes, de resto a produção do filme realiza a proeza de criar uma ambientação adequada de mundo pós-apocalíptico e que se mostra à altura das ambições narrativas do filme. O diretor Sergio Martino e sua equipe, aqui, fizeram muito com muito pouco.


O que realmente detona "2019" (e certamente está na raiz do seu fracasso comercial e posterior desaparecimento) é o roteiro rocambolesco e risível, que precisaria ter passado por pelo menos mais uma dúzia de revisões críticas antes do início da filmagem. É tanta coisa errada que fica até difícil de listar tudo. O espectador é apresentado a temáticas que simplesmente não se desenvolvem na tela, como a ideia de que o amor redime uma vida em meio à desesperança (um tema que é trabalhado apenas no final do filme, em dois minutos, e logo desaparece). O espectador é apresentado ao líder dos Euraks, em um dos momentos de melhor atuação do filme, apenas para descobrir posteriormente que ele só voltará em mais uma pequena cena posterior e que jamais dividirá a tela com o protagonista Parsifal. O espectador é apresentado, nos últimos minutos do filme, ao problema que Parsifal tem com ciborgues - mesmo com um que passou o filme inteiro salvando a pele do herói. Por que um ciborgue é necessariamente algo ruim, ainda que esteja lutando fielmente pela causa do mocinho? Só Deus sabe!

Enfim, o filme oferece uma infinidade de pontos de partida que não levam a lugar algum e que não são devidamente desenvolvidos, resultando numa salada mista de humanidade estéril pós-apocalipse, ciborgues, naves espaciais, homens-macaco (é, é isso aí mesmo, não vou nem começar...) e por aí vai. Para não falar de algumas opções estéticas esdrúxulas. Exemplifico: no mundo de "2019", praticamente todo mundo é feio, sujo, fedido e coberto de feridas e deformidades oriundas da radiação. Todo mundo - menos o galã Parsifal, a belíssima gata loira pela qual ele se apaixona ao longo da trama e a vilã Ania, intepretada por Anna Kanakis, modelo que foi a Miss Itália de 1977. O constraste entre a lindeza limpinha e cheirosa deste trio de beldades com o look sujismundo-encardido-mutante de todo o resto do elenco é uma das coisas mais cômicas do filme.


Um roteiro melhor, com muitas revisões, aliadas a um trabalho de atuação melhor, poderiam ter feito de "2019" um clássico europeu do cinema de ficção-científica. O resultado, no entanto, acaba sendo um clone de "Fuga de Nova York" em versão chá de cogumelo, com uma trama que parece ter sido concebida depois da mistura de um coquetel de drogas.

Em resumo: o filme é recomendável? Depende. Se você se enquadra naquilo que poderíamos chamar de "espectador médio", recomendo não ir atrás deste filme. Você ficará com a sensação de que colocou duas horas de sua vida no lixo. Mas, para quem é fã de filmes de horror e ficção-científica, e sobretudo para quem é fã de "Fuga de Nova York", este pseudo-clone italiano é absolutamente imperdível. Para este público, a diversão é garantida: tem sci-fi, tem aquela atmosfera de trash com filme B, tem muito sangue e splatter, tem efeitos "especiais" de rolar de rir, tem o "bad boy" Parsifal apanhando e sendo capturado sem parar (aliás, por que um cara que perde quase todas é apontado como "a última esperança" da humanidade)?


Claro, é preciso um pouco de estômago e de mente aberta também, na hora de encarar este filme. Afinal, não é todo dia que a gente vê uma moça em coma sendo estuprada por um homem-macaco que quer se reproduzir (graças a Deus, essa piração asquerosa gratuita e desnecessária não é exibida na tela, ficando apenas sugerida entre uma cena e outra). Vai entender a cabeça destes roteiristas que acharam que homens macaco, ciborgues, naves espaciais, um governo secreto no Alaska e um estupro de mulher em coma seriam elementos "indispensáveis" para a trama...


Louvável pelo tanto que constrói em cima de um orçamento tão pobre, admirável pelas suas pretensões e ambições e histericamente risível pela quantidade de absurdos narrativos e falta de noção e bom-senso dos roteiristas, "2019 - Depois da Queda de Nova York", vale uma conferida. Um pouco pela ambientação e atmosfera, um pouco pela ação, mas sobretudo pelos repetidos momentos de canastrice, exagero e nonsense absurdo, que fazem tudo resvalar para o farsesco e render boas risadas.




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