quarta-feira, 12 de abril de 2017

O Caveira resenha: "Mr. Mercedes" (2014), de Stephen King


Esqueça o horror sobrenatural, terreno que King já explorou com maestria tantas vezes ao longo das últimas cinco décadas. Mais do que qualquer outra coisa, "Mr. Mercedes" é uma história de detetive e seus personagens são construídos com os dois pés fincados no chão de um realismo urbano carregado de trivialidade.

Mas não espere uma história de detetive do tipo Agatha Christie, nem algo parecido com um ambiente de filme noir. Neste gênero literário, o que frequentemente faz o leitor devorar o livro é o mistério da identidade do criminoso, a ânsia do leitor em saber a resposta para a singela pergunta: "quem"? O livro de King não poderia passar mais distante desta fórmula tradicional. O autor não apenas revela a identidade do vilão logo no começo da história (para ser sincero, você pode saber o nome do assassino só de ler a orelha do livro!) como boa parte da narrativa se desenvolve pela perspectiva deste cruel antagonista. "Mr. Mercedes" é um romance de detetive no qual o mistério sai de cena para dar lugar a um frenético jogo de gato e rato diante do qual a expectativa do leitor é saber se os "mocinhos" conseguirão deter o criminoso a tempo de impedí-lo de levar adiante seus novos projetos macabros.

Se o vilão da trama foge daquilo que é convencional para o gênero, o mesmo vale para o protagonista. O ex-policial  Bill Hodges é um personagem maravilhosamente verossímil e que exemplifica, pela milésima vez, o conhecido e notório talento de King para criar personagens realistas e carismáticos. Sexagenário, obeso, solitário e aposentado, Hodges é antítese do detetive charmoso, viril e seguro de si que frequentemente identificamos como estereótipo do "detetive" em histórias deste tipo. No início da trama, Hodges não é nada mais do que um gordo velho que passa suas tardes vendo ridículos programas de auditório na televisão. Ele encarna, de certa forma, uma das figuras mais apreciadas por King: a do herói atípico. Não é a primeira vez que King coloca um idoso em uma luta contra forças do mal (veja, a título de exemplo, o ótimo "Insônia" de 1994), mas isso não prejudica a originalidade com a qual ele constrói uma trama detetivesca na qual o herói e o vilão dividem o protagonismo da narrativa de forma intercalada.

Alternando momentos bem humorados com outros de horror psicológico sutil porém perturbador, "Mr. Mercedes" é um thriller que deixa fantasmas, zumbis e criaturas extradimensionais de lado e aposta em um horror que é incômodo sobretudo porque é realista e verossímil. A cabeça do vilão da trama poderia ser a de um colega de trabalho ou  do vizinho que mora aí do seu lado - e talvez seja mesmo!

Aparentemente, o próprio Stephen King sucumbiu ao improvável charme sedutor do sedentário detetive aposentado Hodges, na medida em que o autor transformou o personagem no protagonista de mais dois livros que dão sequência a "Mr. Mercedes": "Finders Keepers" (2015) e "End of Watch" (2016). E pensar que, há mais de quinze anos atrás, King chegou a anunciar a sua "aposentadoria". Hoje ele está com 69 anos e, só nessa década, já lançou oito livros novos. Realmente, quando se trata de heróis sexagenários que se mostram capazes de fazer melhor do que qualquer mocinho mais jovem, nem mesmo o detetive aposentado Hodges pode competir com o mestre King.

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